(*) Cristiane Barbosa Kunz

O recente destaque dado ao racismo em diversos contextos, desde participações polêmicas em reality shows até incidentes em eventos esportivos, como o jogo amistoso entre Brasil e Espanha, ressalta a necessidade de discutirmos a questão sob uma perspectiva trabalhista e de espetacularização do sofrimento. O presente artigo busca explorar essa temática de forma mais aprofundada.

Com título inspirado na obra “Pele negra, máscaras brancas” de Frantz Fanon, este artigo tem como objetivo analisar como a dor alheia é tratada de forma desconsiderada no ambiente de trabalho, especialmente quando se trata de profissionais negros. Abordaremos a espetacularização da dor como um mecanismo que dilui as responsabilidades laborativas da chamada ‘cadeia produtiva’ na cultura do espetáculo.

Historicamente as sociedades são atravessadas pelas mais diversas concepções de mundo e têm se sustentado a partir de assimetrias. Nesta perspectiva, a questão racial ganha contornos importantes quando se trata de mercado de trabalho no Brasil. Aqui, destaca-se: o presente artigo visa analisar a questão sob a perspectiva do direito brasileiro.

Sob este aspecto, cabe destacar que recente levantamento realizado pelo Observatório da Discriminação Racial no Futebol, que ouviu atletas, comissões técnicas, staffs dos clubes e arbitragens em atividade nas Séries A e B do Campeonato Brasileiro masculino, além das Séries A1 e A2 do feminino na temporada 2023, informa que cerca de 41% das pessoas negras já sofreram racismo em sua atividade profissional.

Neste sentido, é importante destacar que, conforme menciona Moreira (2020, p. 86) 

As pessoas não são excluídas de oportunidades sociais apenas por características individuais, elas estão expostas a processos de estigmatização coletivos por compartilharem traços que designam pessoas que supostamente não possuem o mesmo valor dentro de uma dada sociedade. Estigmas sociais podem ser institucionalizados por meio de normas jurídicas ou por práticas culturais que influenciam a operação de muitas instituições públicas e privadas.

Este processo de estigmatização é também componente central na estruturação da sociedade brasileira, estando contido em toda a sua formação com relação às pessoas negras, em razão do processo secular de escravização dos corpos e exploração do trabalho.

Sob este escopo, é certo que o Art. 225 da Constituição Federal garante a todos o direito a um meio ambiente equilibrado, no qual se inclui o meio ambiente do trabalho. No mesmo sentido, o Art. 7º, XXII capitula o direito à redução dos riscos inerentes à atividade profissional, não excluindo as questões relativas à saúde mental, abrangidas, portanto, também, pela proteção conferida pela norma. A Lei 9.615/1998, de igual forma traz como princípio do desporto nacional a segurança, também, com relação à integridade mental (Art. 2º, XI). 

Os efeitos das condutas racistas na saúde mental da população negra são evidentes, escalona-se a questão quando se tem o agir coletivo com vistas a diminuir o indivíduo que está em seu ambiente de trabalho, não podendo sair do local, ou mesmo manifestar qualquer tipo de resistência, uma vez que não há sequer garantias quanto à sua integridade física.

Há que se observar, ainda, os impactos individuais suportados exclusivamente pelo trabalhador e não mensuráveis, uma vez que, a naturalização da violência cotidianamente já faz com que as pessoas negras precisem arcar com uma cota extra de tolerância.

Almeida (2019, p. 47) destaca que “as instituições são apenas a materialização de uma estrutura social ou de um modo de socialização que tem o racismo como um de seus componentes orgânicos”. Assim, tão somente ações efetivas no sentido de reprimir tais práticas poderão levar de fato a um meio ambiente do trabalho efetivamente seguro.

Nesse sentido, propomos a análise da questão a partir do conceito de cadeia produtiva. Isso porque, em que pese não se tenha na hipótese o viés clássico desta modalidade de responsabilização, é certo que há uma ampla gama de sujeitos diretamente envolvidos na concretização dos espetáculos desportivos e que, portanto, precisam ser responsabilizados caso se mantenham inertes.

A responsabilidade empresarial em cadeias produtivas é fruto do corrente e constante processo de terceirização que segmentou as atividades produtivas, fazendo com que se tenha em cada empresa prestadora de serviços parte de um “produto final” a ser observado, tendo em vista haver uma empresa detentora de decisões estratégicas aptas a respaldar toda uma relação de coordenação entre as atividades. Nesse sentido, Delgado (2023, p. 96) destaca que com base em estudos empíricos sobre governança nas cadeias mercadológicas globais, observa-se que

Da grande empresa-líder da cadeia produtiva, titular da marca, do produto e do mercado, emana uma cadeia de comando com as decisões produtivas estratégicas centrais sobre quanto investir na produção, o que produzir, quanto, quando e como produzir, qual preço se propõe a pagar e, o mais relevante, que empresas terão acesso à sua cadeia produtiva. São decisões que se iniciam na concessão de acesso à cadeia produtiva, projetam-se em cláusulas contratuais, mas que se exercem efetivamente nas entrelinhas do contrato, no campo do poder econômico da empresa contratante, tais como as decisões derivadas do poder de fiscalização do processo produtivo.

A autora ainda destaca que as bases teóricas de qualquer teoria que vise a responsabilização nesta seara devem tomar por referência o conceito de trabalho decente, aliados aos direitos fundamentais elencados nos Arts. 7º ao 11º da Constituição Federal de 1988 (DELGADO, 2023, p. 93).

É certo que, quando se trata de espetáculos esportivos, não se verifica o grupo econômico, consoante previsto no Art. 2º, §2º da CLT, entretanto, o interesse integrado visualizado por esta figura jurídica, pode ser objeto de análise sob a perspectiva de uma interpretação analógica quando se trata da proteção à saúde e segurança no ambiente de trabalho.

É preciso ampliar o olhar acerca da “cadeia produtiva” do espetáculo, uma vez que, há entes organizadores que lucram vultosas somas com os campeonatos realizados, cujos interesses, por vezes, se sobrepõem àqueles dos próprios clubes, empregadores originários dos atletas profissionais.

Deste modo, compreender o modo de atuação deste setor econômico para buscar traçar as bases de sua responsabilização em situações de manifesta ofensa à integridade psíquica dos atletas, cumulada com a sua total inação, é fundamental para de fato coibir, também, o avanço de discursos de ódio. Cumpre destacar que a simples realização de campanhas informativas não tem se mostrado suficiente, é preciso haver uma ação efetiva buscando responsabilizar individualmente aqueles que insistem em praticar tais ofensas e impedir sua participação futura em espetáculos, mesmo porque o direito brasileiro já conta com tais mecanismos, tendo em conta que cabe ao empregador garantir a higidez psíquica de seus trabalhadores e os organizadores do espetáculo devem ser corresponsáveis sob esta mesma lógica.

Concluímos que ações efetivas são fundamentais para combater o racismo e a espetacularização do sofrimento no ambiente de trabalho, garantindo o respeito aos direitos fundamentais e à integridade dos profissionais negros. A mera conscientização não basta; é preciso agir de forma concreta para responsabilizar aqueles que perpetuam práticas discriminatórias e promover um ambiente de trabalho verdadeiramente inclusivo e respeitoso.

(*) Cristiane Barbosa Kunz é mestranda em Direito das Relações Sociais na UFPR, membro do Grupo de Pesquisa Clínica Direito do Trabalho e juíza do trabalho no TRT-PR.

Referências

ALMEIDA, Sílvio. Racismo Estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.

DELGADO, Gabriela Neves. Aspectos da Responsabilidade Empresarial em Cadeias Produtivas Estruturadas via terceirização externa na perspectiva do direito fundamental ao trabalho digno. Revista Eletrônica do TRT-PR, Curitiba, V.12, nº 121, p. 89-101, Jun-2023.

MOREIRA, Adilson José. Tratado de Direito Antidiscriminatório. São Paulo: Contracorrente, 2020.

Observatório da Discriminação Racial no Futebol. Relatório Anual da Discriminação Racial no Futebol. Porto Alegre: Museu da UFRGS, 2022. Disponível em: https://observatorioracialfutebol.com.br/Relatorios/2021/RELATORIO_DISCRIMINACAO_RACIAL_2021.pdf. Acesso em: 04 abr. 2024.

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