Projeto da Clínica Direito do Trabalho da UFPR apresenta dados inéditos sobre dimensões, perfis dos trabalhadores e regulamentação jurídica do trabalho por plataformas digitais
Um universo dinâmico, em constante transformação e heterogêneo. Essas foram algumas das constatações com as quais a equipe de pesquisadores da Clínica Direito do Trabalho da Universidade Federal do Paraná (UFPR) se deparou durante a investigação científica sobre as plataformas digitais de trabalho no Brasil. Ao longo de 2021, os cientistas se dedicaram à análise criteriosa do trabalho realizado através das plataformas e da economia digital, a fim de contribuir para a compreensão do funcionamento desse modelo de negócio.
Os números da pesquisa estimam 1,5 milhão de pessoas no mercado de trabalho das plataformas digitais em agosto de 2021 no Brasil, o que corresponde a aproximadamente 1,6% dos trabalhadores do país. O estudo indica que esse número está em acelerada expansão, facilitada pela pandemia da Covid-19 e pela recessão econômica, com impactos negativos num mercado de trabalho historicamente desestruturado.
Dentro do universo de trabalhadores das plataformas no país, mais da metade, cerca de 850 mil pessoas, trabalham com transporte de passageiros. Também foi mapeada a quantidade de prestadores de serviços nas empresas mais populares. Na Uber, por exemplo, aplicativo com maior número de trabalhadores, existiam 485 mil motoristas em atividade. O estudo ainda mostra que há 1,5 mil plataformas digitais em atividade no Brasil – confira mais dados no infográfico.
O projeto de pesquisa reuniu uma equipe multidisciplinar, com especialistas renomados das áreas do Direito, Economia e Sociologia, da UFPR (Universidade Federal do Paraná) e Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). Uma proposta metodológica inovadora foi desenvolvida para explorar o contexto e a realidade dos trabalhadores em plataformas no Brasil. Foram utilizados métodos mistos de análise de tráfego de web e de bancos de dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), questionários aplicados em cerca de 500 trabalhadores de diversas profissões, entrevistas em profundidade, levantamento de propostas legislativas e análise de decisões judiciais.
A pesquisa recém-concluída apresenta um conjunto amplo de dados sobre o funcionamento das plataformas e essa nova forma de trabalho, a partir do qual foi possível traçar a dimensão desse mercado de trabalho no país, dos perfis e trajetórias ocupacionais dos trabalhadores e dos direitos e formas de regulação jurídica. O resultado é um diagnóstico inédito e abrangente desse setor.
Para o coordenador da Clínica Direito do Trabalho da UFPR, professor Sidnei Machado, o estudo é capaz de responder diversas perguntas e fornecer dados confiáveis sobre as plataformas digitais no Brasil. “As plataformas digitais hoje têm uma importância muito grande na economia. Isso faz com que apareçam muitas perguntas de como regular esse setor, como é o perfil dos trabalhadores, onde eles estão, quais são as condições de trabalho. É um questionamento global praticamente sem resposta. A outra é que o Brasil está muito invisibilizado sobre isso, as pesquisas estão todas concentradas na Europa e Estados Unidos. Então fizemos essas pesquisas para que toda nossa sociedade tivesse dados mais concretos e confiáveis para poder utilizá-los”, diz.
O relatório da pesquisa foi publicado no livro “O trabalho controlado por plataformas digitais no Brasil: dimensões, perfis e direitos”, que está disponível no site da Clínica Direito do Trabalho da UFPR.
Diferentes formas do trabalho digital
A pesquisa parte, inicialmente, da divisão dos trabalhadores das plataformas digitais em duas categorias: location-based e web-based, conforme estabelece a literatura internacional sobre o tema. Aqueles enquadrados na location-based são os que precisam atuar em um espaço geográfico determinado, normalmente utilizando um aplicativo pelo celular (Uber, 99Pop, IFood etc.) e realizando suas tarefas por meio de ações mecânicas (entrega de produtos, deslocamento no território etc.).
Já os trabalhadores web-based não precisam de um local previamente determinado para realizar suas atividades e podem executá-las de qualquer lugar do planeta, através da internet. Profissionais que normalmente estão alocados nessa categoria são programadores, médicos com atendimento remoto, professores que aplicam aulas online e os chamados clickworkers (trabalhadores que atuam na calibragem de inteligência artificial), entre outros.
Em termos numéricos, a pesquisa demonstra um abismo entre os trabalhadores dessas duas categorias no Brasil. Os location-based são aproximadamente 1,3 milhão (93%), contra pouco mais de 100 mil web-based (7%).
Perfis e trajetórias ocupacionais
No campo sociológico, a pesquisa utilizou método qualitativo de entrevistas individuais em profundidade e se baseou no estudo da trajetória de vida dos trabalhadores, permitindo compreender as relações com o emprego formal, a subjetivação com a precariedade e a instabilidade permanente, e os sentidos e significados que o trabalho por plataformas assume, por vezes muito distantes das referências analíticas dos estudos do trabalho.
Os entrevistados trabalharam para diferentes plataformas, divididas entre as modalidades web-based e location-based. Os níveis de escolaridade variaram entre ensino médio completo e pós-graduação completa. Já a idade foi de 22 a 63 anos. Foram entrevistados homens e mulheres, brancos, negros e pardos. Os trabalhadores e trabalhadoras, independentemente de seu grau de escolaridade, apresentaram uma trajetória ocupacional pregressa amplamente diversificada: passaram por diferentes profissões, combinaram diferentes ocupações, seguindo caminhos que por vezes se distanciaram de sua formação escolar e profissional.
A partir das entrevistas foi possível observar a complexidade e dificuldade em estabelecer categorias estáveis de análise científica das plataformas digitais de trabalho. Tudo estava em movimento e foi necessária atenção à altíssima flexibilidade dessa forma de subordinação. No contexto da crise econômica, agravado pela pandemia, foram verificados profissionais de alta qualificação que aderiram a atividades de baixa remuneração e qualificação. Por exemplo, trabalhadores com ensino superior realizando compras e entregas de supermercado, revisão de conteúdo e microtrabalhos, serviços de limpeza, entre outros.
A pesquisa também identificou que as trajetórias têm papel determinante na forma como os trabalhadores se relacionam e se dedicam às plataformas. Os dados obtidos nas entrevistas possibilitam afirmar que o trabalho sob controle de plataformas não necessariamente é vivenciado como “bico” ou alternativa ao desemprego. As plataformas se inserem em situações ocupacionais diversas: podem ser a fonte principal de renda, podem envolver longas jornadas de trabalho, além da combinação com outras atividades.
Direitos e regulamentação
As plataformas digitais se apresentam como meras intermediadoras de mão de obra. Porém, não o são, e exploram vazios regulatórios existentes, como comprova a literatura sobre o tema.
Elas atuam no sentido de transferir os riscos das atividades ao trabalhador sob o discurso do trabalho autônomo. Diante desse problema, a pesquisa se propôs a apurar o debate legislativo e jurisprudencial em torno dos direitos dos trabalhadores em plataformas digitais.
A pesquisa identificou que recentemente, com movimentos populares por visibilidade do trabalho nos aplicativos, surgiu uma nova onda de propostas legislativas relacionadas às normas de segurança, saúde e auxílio financeiro, bem como proteção mínima e iniciativa de construção de um marco legal abrangente a respeito do trabalho em plataformas digitais.
De modo geral, pouco se observa nos projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional sobre a adoção de um modelo bem definido para a regulação do trabalho por plataformas digitais. Foram identificados três vieses nos projetos: esforço protetivo para garantir direitos mínimos de saúde, renda e condições de trabalho; a inclusão no estatuto do emprego; e uma tentativa de afastar o reconhecimento da relação de emprego e instituir direitos básicos. No segundo viés, apareceram pouquíssimas propostas.
O projeto mais abrangente identificado é o PL nº 3.748/2020, da deputada Tabata Amaral, que se apresenta como resposta ao breque dos apps. Em síntese, a proposta visa instituir o modelo do regime de trabalho sob demanda, regular o modelo de liberdade e autonomia e prever expressamente a desqualificação da relação de emprego. Ademais, o projeto tenta ainda blindar as plataformas contra o risco de intervenção judicial, buscando afirmar expressamente a não descaracterização do modelo sob demanda. Assim, essa e outras iniciativas indicam a confirmação de uma tendência já observada nas regulações do trabalho desde os anos 2000, com a formação de regimes próprios de contratos civis.
No aspecto jurisprudencial, a pesquisa partiu da matriz normativa brasileira, que se baseia no modelo clássico da subordinação jurídica para distinguir a relação de emprego, com base no artigo 3º da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho). O primeiro objetivo é teórico: identificar as fontes da jurisprudência, o conjunto de normas que os tribunais reconhecem como direito e que motivam suas decisões, na perspectiva do conceito da norma de reconhecimento. Em segundo lugar, há um objetivo prático: localizar os elementos decisórios no plano do texto para identificar as premissas da estrutura argumentativa.
A pesquisa considerou o período pós-2017 e se deu a partir de buscas ativas através de certidões obtidas junto aos tribunais, e posterior análise de cada processo e levantamento das decisões em segundo grau. Assim, foi possível identificar as decisões que versaram sobre o reconhecimento da relação de emprego, proferidas nos tribunais regionais e TST (Tribunal Superior do Trabalho). As decisões analisadas foram classificadas entre favoráveis e desfavoráveis: enquanto as primeiras reconheceram a relação de emprego, as últimas afastaram.
Entre decisões favoráveis, minoritárias, aparece a influência de decisões estrangeiras. A decisão mais influente identificada na rede foi a proferida pela Suprema Corte do Reino Unido, que enquadrou os motoristas de Uber no estatuto do worker, figura intermediária que não corresponde ao empregado (employee), mas confere ao trabalhador direitos básicos.
Entre as decisões desfavoráveis, os indícios mais frequentes foram a ausência de controle e direção do trabalho, a liberdade do trabalhador para decidir quando e onde trabalhar, a liberdade para recusar trabalho oferecido pela plataforma e o objeto social da plataforma, compreendido como empresa de tecnologia.
A pesquisa contemplou um conjunto de 485 decisões espalhadas pelas 24 regiões da Justiça do Trabalho, relacionadas às plataformas Uber, 99 Pop, iFood, Rappi, Loggi e Play Delivery. Nesse conjunto, 78,14% das decisões não reconheceram a relação de emprego, 15,88% não versaram sobre a existência de relação de emprego (sendo decisões sobre terceirização ou que não enfrentaram o mérito discutido) e apenas 5,98% das decisões reconheceram a relação de emprego entre trabalhador e plataforma. O maior volume de judicialização se encontra nas plataformas de transporte urbano: Uber e 99 Pop.
A pesquisa de rede de citações e lista de decisões mais influentes revela o papel central do TST na formação da jurisprudência. As decisões mais influentes são anteriores ao fenômeno do trabalho por plataformas digitais, compondo a jurisprudência sobre parceria entre profissionais em salões de beleza e caminhoneiros autônomos. As decisões do TST envolvendo discussão sobre relação de emprego entre motoristas e a Uber também estão entre as mais citadas. Observa-se nessas decisões argumentos ressaltando a autonomia e liberdade dos trabalhadores, e rechaçando a caracterização dos mecanismos de avaliação como ferramentas de controle do motorista.
Conclusões e proposições
Do ponto de vista da pesquisa, um ideal regulativo ajustado ao modelo de Direito do Trabalho no Brasil e, por outro lado, à heterogeneidade do trabalho nas plataformas, apesar do traço comum da precariedade, deve partir de um modelo de direitos universais mínimos, que contemple quatro dimensões: (1) Direitos básicos (segurança sobre o vínculo, remuneração, limite de jornada etc.); (2) Proteção à saúde e à vida (para proteger contra o risco elevado, em especial entregadores); (3) Representação coletiva (ação coletiva, representação e negociação coletiva); (4) Direitos digitais (desconexão, proteção de dados etc.).
Com base em todo o desenvolvimento da pesquisa e nas conclusões encontradas, algumas proposições podem contribuir para o avanço do debate sobre o tema. É fundamental associar o trabalho controlado por plataformas aos direitos de cidadania no trabalho. Para superar o debate de como regular e quem proteger – campo de debate e de muitas disputas no Brasil, onde há tradição de forte intervenção legislativa estabilizadora nas relações de trabalho –, o caminho é a construção de uma lei protetiva que defina a relação de emprego, em um contrato de trabalho padrão, com as garantias de direito ao salário mínimo mensal, limite de jornada, descanso semanal, férias, acesso à Previdência Social, responsabilidade da plataforma pelos custos do trabalho e direito à representação sindical, incluindo a negociação coletiva.