Pesquisadora destaca que as plataformas abarcam diferentes tipos de trabalho e praticam distintas formas de controle.
📸 Marcos Oliveira/Agência Senado
A socióloga Ludmila Costhek Abílio é uma destacada pesquisadora sobre o tema do trabalho digital, sendo uma das primeiras a estudar a uberização no Brasil.
Doutora em ciências sociais e membro do Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho (Cesit/Unicamp), desenvolve pesquisas que ajudam a compreender as transformações das relações laborais no contexto da digitalização.
Atualmente, Ludmila também compõe a equipe multidisciplinar de pesquisa sobre o trabalho por plataformas digitais da Clínica Direito do Trabalho da Universidade Federal do Paraná (UFPR), coordenada pelo professor Sidnei Machado, e se dedica às análises sociológicas qualitativas e dos perfis sócio-ocupacionais.
Nesta entrevista à Clínica de Direito, a socióloga dialoga sobre as formas de controle e gerenciamento da plataformização do trabalho, suas percepções acerca dos resultados preliminares da pesquisa da UFPR e os desafios de estudar esse universo tão dinâmico.
Clínica Direito do Trabalho UFPR – A pesquisa da UFPR da qual você participa pretende traçar um quadro empírico e analítico sobre o trabalho por plataformas digitais no Brasil. Como você enxerga esse objetivo?
Ludmila Abílio – É um desafio complicado porque a própria definição do que é o trabalho em plataformas é difícil. O fundamento desse campo é a informalização de tudo. Tenho escrito bastante sobre esse processo de informalização. É possível mapear as plataformas, mas mesmo esse mapeamento não é simples. Você não sabe o contingente de trabalhadores. Algumas vezes não estão bem definidos quais tipos de trabalho estão sendo executados. Tudo está em movimento. Então, temos que abraçar essa informalização como um pressuposto da pesquisa. Esse estudo tem uma riqueza muito grande ao abrir três linhas de investigação, que são a análise de tráfego de dados, a pesquisa quantitativa e a qualitativa, todas construídas coletivamente pela equipe multidisciplinar e com questões em comum. As linhas estão muito bem articuladas.
Clínica Direito do Trabalho UFPR – O caráter multidisciplinar da pesquisa, por envolver os campos da sociologia, da economia e do direito, possibilita uma investigação aprofundada?
Ludmila Abílio – Essa interdisciplinaridade é fundamental e está colocada em cada questão que guia essa pesquisa. Desde a formulação das perguntas do questionário até a estruturação do roteiro de entrevistas. Tudo está sendo orientado por uma compreensão mais aprofundada dos perfis socioeconômicos desses diferentes tipos de trabalhadores, suas condições de trabalho, suas relações com o controle das plataformas, suas experiências e perspectivas sobre direitos e proteções.
Um dos caminhos da pesquisa envolve a definição de tipos sociais, que é uma abordagem muito sociológica, para entender como esse mundo heterogêneo do trabalho vai se organizando, mas ao mesmo tempo o que ele tem de comum. Ou seja, tentar mapear o que são as especificidades e o que há de comum nesse tipo de trabalho nas diferentes plataformas.
Clínica Direito do Trabalho UFPR – Já é possível identificar as características comuns entre os trabalhadores de plataformas digitais?
Ludmila Abílio – O que fizemos a partir das entrevistas foi primeiro mapear os diferentes perfis socioeconômicos, que posteriormente ficarão mais robustos a partir da análise quantitativa. Na qualitativa estamos olhando para dez, vinte trabalhadores de forma aprofundada. Um elemento que podemos perceber de comum são as formas de controle. Como esses trabalhadores vão traçar suas estratégias cotidianas na relação com essas formas de controle que vão organizando esse trabalho. Só que essas formas também não são homogêneas. Diferentes tipos de trabalho estão sendo controlados de distintas formas. Talvez o elemento em comum seja essa instabilidade e informalização das regras. Elas são onipresentes, mas não são fixáveis. Há no relato de todos os trabalhadores a busca pelo deciframento. ‘Por que eu recebo tal projeto?’. ‘Por que eu recebo tal corrida?’. ‘Por que em determinado momento eu sou penalizado ou não?’. Nada disso está claro. É um elemento que tece esse campo.
Porém, também percebemos as especificidades. Esses trabalhos não estão todos subordinados da mesma forma. São diferentes modos que vão em alguma medida dar mais ou menos o espaço de negociação e de autonomia ao trabalhador. Existem desde as plataformas que vão operar centralizadamente na distribuição do trabalho, na precificação desse trabalho, e indiretamente na determinação do tempo de trabalho; até outras que ainda deixam para o trabalhador uma certa possibilidade de negociação sobre o valor do seu trabalho e sua forma de execução, o que não quer dizer que também não estejam incidindo na definição da execução, na remuneração e no tempo de trabalho.
Outro elemento que nós mapeamos é a relação de como esse tipo de trabalho vai se inserir na trajetória dos trabalhadores. Como as experiências pregressas vão pautar a conexão que esses trabalhadores estabelecem com as plataformas. Isso já vai romper um pouco o senso comum, porque a situação do desemprego que leva esse trabalhador às plataformas é uma das condições possíveis nesse tipo de trabalho. Existem muitas outras. Há trabalhadores que têm um emprego formal e combinam com o trabalho por plataformas. Você encontra também algo muito marcante que são trabalhadores que em alguma medida fogem do emprego formal. São pessoas que têm uma trajetória na formalidade e buscam se tornar autônomos, vendo nas plataformas mais um caminho para isso. Outros já estavam estabelecidos como autônomos e conciliam essa condição com esse tipo de trabalho. As plataformas aterrissam nessa busca pela autonomia e se apropriam de forma centralizada dela. Quanto mais as plataformas conquistam mercados, mais a busca pela autonomia é subordinada às condições de trabalho por elas engendradas.
Existe, por exemplo, a figura do pintor imobiliário que é autônomo. Ele era metalúrgico, há anos foi construindo uma cartela de clientes, até que conseguiu sair do emprego e passou a viver como pintor. Aí ele usa a plataforma como um apoio. Quando não tem trabalhos da sua própria rede, recorre à plataforma. Essa é uma situação comum nas entrevistas, não é exceção.
Precisamos compreender que as plataformas vão aterrissar em diferentes situações ocupacionais. Por serem muito informalizadas, são bastante flexíveis. Elas podem se adaptar e combinar em muitas condições ocupacionais.
Clínica Direito do Trabalho UFPR – Um discurso presente na categoria dos entregadores de plataformas, por exemplo, é de que não querem conviver com a figura do patrão. Alegam não quererem cumprir uma jornada pré-estabelecida e que trabalham conforme suas disposições, mas muitas vezes têm cargas horárias maiores daquelas determinadas em leis. Seria uma falsa autonomia do trabalho por plataformas?
Ludmila Abílio – Autonomia não é a definição correta. Eu venho falando e escrevendo muito sobre o ‘autogerenciamento subordinado’. Inclusive publiquei alguns artigos com esse título. Não é uma questão de autonomia, trata-se de um gerenciamento de si que está inteiramente subordinado às regras, às determinações da empresa, mas que envolve essa busca pela autonomia. De fato, fica na mão do trabalhador uma série de decisões, mas não são livres. São tecidas na relação com as determinações das empresas.
Temos que olhar para o entregador com muito cuidado. A figura do motoboy, mesmo antes da uberização, já se orientava por essa busca da liberdade. Quando fiz pesquisa com os motoboys em 2010, e ainda nem se falava em aplicativos, eu fazia essa pergunta: ‘o que você mais gosta no seu trabalho?’. Eles respondiam ‘a liberdade’. E ainda eram celetistas. Só que pelo fato de que havia uma distribuição das corridas, eles estavam na rua o tempo todo. Tinham pontos de encontro e conversavam com outros motoboys. Esse não ter patrão está muito associado à figura de um chefe no qual você está em um escritório e ele está lá te vigiando. Não é que o motoboy ache que ele não tem chefe, na verdade não é bem isso que está em jogo, mas ele busca se livrar daquela figura do gerente, do cara que o controla o tempo todo.
Os aplicativos se apropriam dessa busca pela autonomia. O trabalhador preza muito de, por exemplo, não ter que estar às sete da manhã na empresa, ainda que vá trabalhar quatorze horas naquele dia. Valoriza poder dizer ‘hoje eu não vou trabalhar de manhã, vou à noite’. Porém, tem plena consciência de que está trabalhando absurdamente, que se acidentar ninguém se responsabiliza por ele, que a empresa está rebaixando o valor do trabalho dele.
É intrigante. O mesmo entregador que diz para você que não quer ser subordinado ao chefe, fala que Uber Eats é trabalho escravo. Essa formulação vem da mesma pessoa. Venho insistindo muito nisso, e foi uma questão que pautou algumas formulações da pesquisa, de como nós escutamos esses trabalhadores, como entendemos as experiências deles, como nós compreendemos o horizonte desses trabalhadores sem colocar o carimbo da falsa consciência, de que acham que são chefes de si próprios. Temos que entender que esses trabalhadores estão falando coisas mais complexas.
Clínica Direito do Trabalho UFPR – Diante desse universo heterogêneo que é o trabalho por plataformas digitais, como a pesquisa atua no sentido de estabelecer classificações?
Ludmila Abílio – A pesquisa partiu de uma divisão. Todas as divisões são complicadas nesse contexto de flexibilidade das plataformas. Portanto, é difícil fixar. Há que se ter clareza disso. Mas a pesquisa fez essa divisão entre o web-based e o location-based. Essa separação se refere a diferentes formas de organização de controle do trabalho. O location-based precisa de um trabalhador que tem uma determinação socioespacial. Está diretamente atrelado ao território para que aquele trabalho possa ser executado. Um motoboy em São Paulo não tem como entregar pizza para um consumidor na China.
Outra coisa é um trabalho que pode ser provido de qualquer lugar. Temos que ter cuidado com essa separação, porque não quer dizer que o web-based não tenha determinações socioespaciais, mas elas não estão diretamente atreladas à execução do trabalho. Então, é claro que as determinações sobre quem faz microtarefa também são geopolíticas. Quem está fazendo esse trabalho são exércitos de indianos, de brasileiros, imigrantes nos países do centro. As formas como as desigualdades sociais estão articuladas determinam espacialmente a realização e as condições desse trabalho.
Contudo, a divisão entre location e web-based é pertinente, pois possibilita observar como tudo isso opera no território, na forma de como as determinações socioeconômicas estão envolvidas nessa história. Envolve ainda a compreensão das diferenças que operam nessas duas categorias, algo que estamos investigando. Por exemplo, o perfil do sujeito da microtarefa pode ser bem diferente em termos de escolaridade, de empregos que já teve, entre outros; do perfil do trabalhador que está na rua fazendo entregas. A remuneração deles e o tempo de trabalho podem nem ser tão diferentes. Isso é outra coisa que a pesquisa investiga, mas existem determinações que operam nessas formas de distribuição e organização do trabalho. É preciso, ainda, pensar nas formas de organização e gerenciamento das empresas nessas duas categorias.
Clínica Direito do Trabalho UFPR – Uma percepção possível é de que as microtarefas de web-based se nivelam com a esfera de location-based nas baixas remunerações. Como a pesquisa analisa a situação inversa, dos trabalhadores mais qualificados?
Ludmila Abílio – Os dados ainda não estão prontos na pesquisa quantitativa, mas na análise qualitativa percebemos perfis socioeconômicos heterogêneos. Há trabalhadores de alta qualificação que estão subordinados às plataformas, como psicólogos, musicistas, terapeutas, jornalistas. Por exemplo, um doutorando em música que dá aulas de bateria a partir de um aplicativo, além de já trabalhar como professor autônomo.
É interessante essa pergunta sobre o microtrabalho. Existem pessoas se qualificando, fazendo graduação e pós-graduação em diversas áreas, mas que estão realizando esse tipo de tarefa. Precisamos entender melhor como esses tipos de trabalho entram nessas diferentes trajetórias. O que sabemos de saída é que são perfis socioeconômicos heterogêneos. Muitas vezes a remuneração não necessariamente acompanha tanta heterogeneidade, ainda precisamos observar isso mais de perto. É um dado que precisa ser explorado, porém acredito que são esses os elementos centrais.
Clínica Direito do Trabalho UFPR – A pesquisa avança sobre um tema pouco estudado. Quais as perspectivas no sentido de decifrar as novas relações de trabalho que vão se estabelecendo com as plataformas digitais?
Ludmila Abílio – Em primeiro lugar, o estudo tem uma riqueza no sentido de pensar no que há de comum. Ele tenta mapear os elementos gerais, generalizáveis. Nos possibilita falar em trabalho sob o controle de plataformas. Simultaneamente, é uma pesquisa com um olhar aguçado nas especificidades. Essas particularidades também vão desvendar o que as plataformas têm em comum e como articulam diferentes desigualdades, diferentes perfis socioeconômicos.
Um aspecto muito interessante da pesquisa é que abarca e olha para essa heterogeneidade. Ela dá um passo além, pois ao mesmo tempo que contribui para aprofundar elementos que estão em jogo no debate internacional, uma vez que dialoga com pesquisas do mundo todo, também aterrissa na realidade social do Brasil. Isso é muito importante. A pesquisa traz essa contribuição de, ressalto novamente, entender essas especificidades, o que também auxilia a compreender o que existe de geral e o que vai guiando esse debate internacional. É uma contribuição científica muito válida nesse sentido.
Clínica Direito do Trabalho UFPR – Como você imagina que serão as novas relações de trabalho diante da revolução das plataformas digitais?
Ludmila Abílio – Eu faço um caminho inverso. Venho falando muito em uberização do trabalho e as plataformas são parte desse processo, não a centralidade. Compreendo a uberização como uma tendência que vai organizando o mundo do trabalho. Trata-se de uma nova forma de controle e gerenciamento do trabalho. O cerne consiste em transformar trabalhadores convencionais em trabalhadores sob demanda, que possam ser usados como uma força de trabalho da forma mais racionalizada possível, com menos custos e muito desprotegida.
Esse elemento ultrapassa as plataformas. Estamos observando isso acontecer, por exemplo, na reforma trabalhista. É uma tendência que está pressionando o campo do trabalho nacional e internacionalmente. As plataformas caem como uma luva nessa história. Elas capitalizam esse processo e o catalisam.
Certamente as plataformas vão avançar para outros setores. Devemos entender como as formas de controle e gerenciamento estão cada vez mais eliminando direitos garantidos e transferindo os riscos para os trabalhadores. Usam as pessoas da forma mais eficiente possível, sem ter nenhum tipo de responsabilização sobre elas.