Por Sidnei Machado

Depois de quase dois anos de pandemia, o presidente Jair Bolsonaro sancionou, no dia 06 de janeiro, a Lei nº 14.297/22, que estabelece regras emergenciais de proteção a entregadores de serviços de aplicativo durante a pandemia de covid-19. A aprovação da lei é tardia, pois o projeto foi apresentado em abril de 2020 (PL 1.665/2020) e aprovado na Câmara dos Deputados e Senado em dezembro de 2021.  O texto aprovado contempla direitos básicos, sem enfrentar a questão da regulamentação do trabalho, mas a sua aprovação no difícil contexto brasileiro deve ser considerada positiva para iniciar no país um debate sobre a responsabilidade das plataformas digitais.

A lei é dirigida às empresas de aplicativos de entrega, que o texto define, de forma vaga e insuficiente, como aquelas que tem como “principal atividade a intermediação, por meio de plataforma eletrônica, entre o fornecedor de produtos e serviços de entrega e o seu consumidor”. Ainda que incorreta a definição de mera intermediação para definir o negócio dessas empresas, que prestam serviços nos diversos setores em que atuam (transporte, alimentação, etc.), na prática a lei pretende contemplar os entregadores via plataformas digitais.  

Como garantias ao entregador, a lei prevê a obrigatoriedade de contratação de seguro contra acidentes pessoais, que deve abranger acidentes pessoais, invalidez permanente ou temporária e morte.  Porém, com cobertura restrita aos acidentes havidos entre o período de retirada e entrega de produtos, o que incorpora a pretensão das empresas de plataformas em não se responsabilizar pelo tempo não efetivo de trabalho.

Em relação à saúde do entregador, além de prever obrigação de fornecimento de máscaras e álcool em gel, a lei assegura ao trabalhador diagnosticado com covid-19 uma assistência financeira por parte da empresa de aplicativo durante o período inicial de 15 dias. Esse prazo poderá ser prorrogado por mais dois períodos sucessivos de 15 dias, mediante apresentação de exame RT-PCR ou laudo médico que constate a persistência da doença. O valor da ajuda corresponde à média dos três últimos pagamentos mensais recebidos pelo entregador. A limitação da ajuda até 45 dias pode ser insuficiente para os casos mais graves de longa internação e recuperação do trabalhador. O mais adequado deveria ser a responsabilidade pelo período que perdurar a incapacidade do trabalhar.

A lei incorpora uma conquista do movimento dos trabalhadores pelo banimento da prática de bloqueios e suspensões das plataformas, sem justificativa e garantia de prévia defesa. Na hipótese de bloqueio, de suspensão ou de exclusão da conta do entregador, as plataformas deverão fazer a comunicação com 3(três) dias de antecedência, acompanhada da motivação. A lei não especifica os procedimentos para a ampla defesa pelo trabalhador e, com isso, há o risco de se instituir uma mera formalidade.

O presidente Jair Bolsonaro fez dois vetos ao projeto. Foi vetado o artigo que assegurava o fornecimento de alimentação ao entregador por intermédio dos programas de alimentação do trabalhador (Lei n.º 6.321/1976, com autorização para as empresas deduzirem o valor no lucro tributável do imposto de renda. O argumento do Ministério da Economia é de que haveria renúncia de receita sem acompanhamento de estimativa do seu impacto orçamentário e financeiro e das medidas compensatórias. O outro ponto vetado atribuía às empresas a obrigação de adotar as medidas necessárias para evitar o contato do entregador com o consumidor final ou com outras pessoas durante o processo de retirada e entrega de produtos e serviços. Para o Ministério do Trabalho e Previdência, a obrigação atribuída às empresas contraria o interesse público. 

O caráter básico da lei se manifesta na necessidade de previsão do direito ao trabalhador a receber água potável e acesso às instalações sanitárias de seu estabelecimento.

Nas entrelinhas do texto da lei se encontra o não dito. É na preocupação que se teve em apenas ceder a direitos mínimos aos entregadores, mantendo-os fora da relação de emprego, o que expressa o grande descompasso do debate brasileiro com o que ocorre atualmente na União Europeia, por exemplo, que caminha na direção de reconhecer direitos trabalhistas aos trabalhadores de plataformas.

A lei é transitória, vigente somente durante a pandemia e seu impacto será reduzido. O debate de regulação do trabalho via plataformas continua em aberto no Brasil, à espera de condições políticas para que um projeto abrangente reconheça os direitos trabalhistas.

Confira a íntegra da lei (clique aqui)

*Sidnei Machado é professor doutor da Faculdade de Direito e do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e coordenador da Clínica Direito do Trabalho da UFPR.

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